Morte de cinegrafista em protesto acende debate sobre legislação de “mão dura” no Brasil

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O cinegrafista Santiago Ilídio Andrade é atingido durante protesto no Rio de Janeiro. Foto: Agência Brasil

Vem gerando muita comoção pública no Brasil a morte do cinegrafista Santiago Ilídio Andrade, que atuava em uma manifestação contra o aumento no preço do transporte público no centro do Rio de Janeiro-RJ. Santiago foi atingido na cabeça por um rojão atirado por um manifestante, e teve morte encefálica na última terça, 10 de fevereiro.

A Associação Brasileira de Imprensa publicou uma nota convidando a sociedade brasileira “para um amplo debate em torno do relevante papel da imprensa do Estado Democrático de Direito e para a imperiosa necessidade de regulamentação de leis que ampliem e reforcem a segurança dos profissionais de imprensa no exercício da profissão”, enquanto o Jornal Nacional, noticiário de maior audiência da televisão brasileira, exibiu um editorial em rede nacional exigindo “que os culpados sejam identificados, exemplarmente punidos”.

Desde então, a morte do cinegrafista tem servido como causa mobilizadora de diversos debates: sobre a segurança dos jornalistas em manifestações, sobre a natureza jurídica dos crimes praticados contra jornalistas e sobre formas de contenção à violência praticada por manifestantes em protestos no país, que desde junho do ano passado vê a população ir às ruas reivindicando mudanças nas políticas públicas.

Após morte de colega, cinegrafistas e fotógrafos protestam no Congresso Nacional, em Brasília-DF. Foto: Luis Macedo/Câmara dos Deputados

Após morte de colega, cinegrafistas e fotógrafos protestam no Congresso Nacional, em Brasília-DF. Foto: Luis Macedo/Câmara dos Deputados

Para o Sociólogo e professor da UERJ Luiz Eduardo Soares, a morte do cinegrafista é um marco na trajetória dos recentes protestos no país, e demonstra um erro estratégico de parte dos manifestantes que aderem à violência como forma de manifestação, conforme expressou no seu Facebook:

A morte do cinegrafista da Band é uma tragédia e um ponto de inflexão no processo político em curso. Pela tragédia, me solidarizo com a dor de familiares e amigos. Quanto à política, esse episódio dramático é a gota d'água, ou a gota de sangue que muda a qualidade dos debates e das identidades em conflito.

Quebrar vitrines é prática equivocada, contraproducente e ingênua, mas compreensível como explosão indignada, ante tanta iniquidade e a rotineira violência estatal, naturalizadas pela mídia e por parte da sociedade. Mas tudo se complica quando atos agressivos deixam de corresponder à explosão circunstancial de emoções, cuja motivação é legítima. Tudo se transforma quando atos agressivos já não são momentâneos e se convertem em tática, autonomizando-se, tornando-se uma espécie de ritual repetitivo, performance previsível, dramaturgia redundante.

Os atos agressivos passam a ser a celebração narcísica da própria força, uma teatralização paradoxalmente impotente do ódio. As cenas se sucedem de modo a espelhar a brutalidade policial, realimentando o circuito destrutivo e autodestrutivo da violência, cujo simbolismo afirma o avesso da solidariedade, da fraternidade e dos valores gregários – corroídos pelos mecanismo vigentes de exploração capitalista.

Ou seja, a ritualização da agressividade, por parte de manifestantes, ecoa, reflete e reproduz o que pretende combater. Atos guerreiros instauram nas ruas uma linguagem monossilábica e fetichista que é a réplica grotesca do espírito do capitalismo. O vocabulário de atos agressivos é exíguo e o repertório de imagens, muito pobre – mero decalque do imaginário conservador do entretenimento midiático.

Por outro lado, mesmo lamentando a trágica morte do profissional de imprensa, muitos continuam questionando o comportamento da grande imprensa e do Estado frente a outros desmandos nas manifestações e fora delas, a exemplo do grupo de jornalismo independente Mídia Ninja:

Essa tragédia não irá ocultar a culpa daqueles que fizeram da violência o falso mote da luta nas ruas. Não vamos esquecer o real motivo de centenas de milhares de pessoas saírem de casa, na iminência do aumento das passagens. 

O que não se fala é que não foi apenas Santiago que morreu. Ele não foi a primeira vítima da violência nos protestos no Brasil, nem a primeira morte do ato da última sexta feira. Poucos souberam do óbito do ambulante Tasman Amaral Accioly, um idoso, atropelado por um ônibus durante o caos instaurado pelas bombas da Polícia Militar em plena Central do Brasil, ou dos casos ocorridos em Belo Horizonte e Ribeirão Preto (SP) no ano passado. 

Invisíveis também são milhões de vítimas de um sistema que mata, impiedosamente, todos os dias.

Uma das manchetes divulgadas pelo blog Anonymous Br4sil, que fez uma lista com outras mortes em protestos.

O blog Anonymous Br4sil (www.anonymousbr4sil.net) também lançou manchetes a partir de uma lista com mortes em protestos.

Um levantamento interessante começou sendo feito pelo Centro de Mídia Independente (CMI), com uma lista de pessoas mortas e feridas no Brasil em manifestações. A maioria das vítimas perdeu a vida ou a visão com balas de borracha ou gás lacrimogênio usados pelas forças policiais, mas também há registo de outros casos como atropelamentos e até quedas de viadutos. 

Novas leis contra a violência ou contra as manifestações?

Na onda do clamor público, autoridades políticas estão aproveitando para pautar mudanças legislativas de “mão dura” que supostamente teriam a intenção de frear a prática de violência por parte de manifestantes. O Senador Jorge Vianna (PT-AC) chegou a proferir um discurso reivindicando o caráter de urgência na votação do Projeto de Lei nº 499/2013, que cria crimes de Terrorismo no Brasil.  Para ele, “é uma manifestação terrorista quando o jornalista não pode trabalhar cobrindo uma manifestação, quando alguém encapuzado, com máscara, proíbe que o jornalista trabalhe. Isso é uma ação terrorista”.

Já o Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, remeteu um projeto de lei ao Ministério da Justiça que, entre outras medidas, prevê a proibição da utilização de máscaras durante manifestações. “Em função do que temos hoje na lei, não temos condições de manter estas pessoas presas e puni-las, porque os crimes são de menor potencial ofensivo. Temos prendido muita gente, foram cerca de 50 na última quinta-feira, mas todos foram soltos. Fizemos o estudo para propor as mudanças legislativas para evitar que isso ocorra”, afirmou, completando que “temos a Copa do Mundo à nossa porta”.

O advogado Pedro Abramovay reagiu à proposta de tipificação do terrorismo, e publicou uma carta ao Senador Jorge Vianna:

Após anos de discussão, de muito debate, de muito diálogo com experiências internacionais, estou completamente convencido de que esta legislação não trará nenhum benefício concreto para a população brasileira e pode gerar enormes prejuízos para a nossa democracia.

É necessário, em primeiro lugar, separar a ideia de condenação total do terrorismo da necessidade de se criar um tipo penal específico para ele. O terrorismo é a maior violência que se pode cometer contra a democracia. É a aposta na violência e no medo como forma de substituição do diálogo democrático. Por isso ele deve ser condenado e punido.

Até mesmo senadores do mesmo partido criticaram a tal Lei do Terrorismo:

Como se vê, o Brasil corre o risco de realizar mudanças legislativas antidemocráticas após um momento de grande comoção midiática.

Correção: O levantamento de pessoas mortas e feridas no Brasil em manifestações começou a ser feito pelo Centro de Mídia Independente do Brasil (CMI) e não pelo blog do Anonymous Br4sil, como indicávamos originalmente neste artigo.

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