Análise do “Technology for Transparency”, Parte II

Esta é a segunda parte de uma série de três artigos que objetivam contextualizar os estudos de casos e listagens de projetos no Technology for Transparency Network. Leia a primeira parte aqui.

Ao longo do Technology for Transparency Network nós já documentamos 30 projetos de tecnologia que promovem a transparência, responsabilidade, e engajamento cívico, mas ainda precisamos definir claramente cada um destes conceitos e explicar em detalhes porque eles valorizam trazer a boa governança e uma sociedade saudável.

Porque Transparência?

Quando discutimos a transparência, geralmente nos referimos à informações publicadas sobre processos do governo, orçamentos, e oficiais eleitos. Há também outros projetos, como o CorpWatch, Publish What You Pay, e Sourcemap, que objetivam publicar mais informações do setor privado que também são de interesse público.

Algumas vezes estas informações são publicadas pelos próprios governos. Por exemplo, em junho de 2002, quando o então presidente do México, Vicente Fox, assinou a primeira lei de liberdade de informação do seu país que requisita às agências do governo publicarem, de uma maneira rotineira e acessível, todas as informações no que tange seu funcionamento diário, orçamentos, operações, equipe, salários, relatórios internos, e atribuição de contratos e concessões. (Uma clara análise da lei foi publicada por Kate Doyle no dia em que foi aprovada. John Ackerman publicou uma avaliação dos três anos da implementação da lei no México em comparação com iniciativas de liberdade de informação semelhantes por todo o mundo.)

Entretanto, muitas vezes os governos não querem publicar informações sobre suas atividades e orçamentos porque isso pode levar a críticas e expor comportamentos corruptos. Em alguns destes países, cidadãos começaram a publicar informações por conta própria. Ory Okolloh, a co-fundadora de Mzalendo, conta-nos que o projeto começou em 2006, quando os deputados quenianos exigiram que o website do parlamento fosse derrubado para prevenir o acesso público a seus curriculums. Então, cidadãos quenianos preocupados começaram a participar das sessões do parlamento com o intuito de publicar suas observações e ajudar a construir um banco de dados online com informações legislativas. De modo semelhante, o Mumbai Votes coleta e publica informações com os registros criminais dos oficiais públicos e candidatos a eleições.

Muitas vezes achamos que os governos, de fato, publicam informações sobre suas atividades e gastos, mas eles fazem isso de modo que esses dados não são facilmente acessíveis ou compreensíveis. Por exemplo, o governo municipal de Tel Aviv publica seu orçamento a cada ano em um longo e detalhado documento PDF. Todas as informações estão lá, mas o documento é publicado em um modo o qual os cidadãos não podem facilmente compreender, visualizar e analisar as decisões dos gastos de seu governo. A equipe por trás do “Our Budget“, portanto, usou uma combinação da tecnologia de reconhecimento ótico de caracteres (OCR, na sigla em inglês) e verificação humana para converter os dados para um formato de planilha e uso de ferramentas online para visualizar e analisar os gastos da cidade. Na Argentina, todos os partidos políticos são requisitados a declarar publicamente as contribuições de campanha que receberam pelo menos 10 dias antes do dia de votação. Entretanto, mais uma vez estes partidos publicam a informação em longos relatórios PDF que obscuram as relações entre dinheiro e política nas campanhas eleitorais. Dinero y Política é uma tentativa de apresentar esta mesma informação usando visualizações interativas que claramente comparam e constranstam as contribuições da campanha por distrito, partido político e indústria. No Quênia, o Budget Tracking Tool coleta os orçamentos de projetos de desenvolvimento locais de fundo federal, que estão enterrados em páginas da web do governo, e os apresenta em um único banco de dados onde os usuários podem deixar comentários sobre o progresso, impacto e eficiência dos projetos. (Até agora, poucos comentaram.)

Porque Participação Cívica?

A transparência leva à prestação de contas? Se os cidadãos tiverem mais informações sobre as atividades de seu governo, e mais acesso à essa informação, então estariam os oficiais públicos compelidos a fazer seu trabalho com mais competência? Os cidadãos vão exigir que suas opiniões sejam levadas em conta na formulação e cumprimento de decisões políticas? Recentemente alguns acadêmicos e observadores estão lançando dúvidas sobre essa hipótese de longa data. “A transparência mobiliza o poder da vergonha,” escreve Jonathan Fox, “ainda que os sem-vergonhas possam não estar vulneráveis à exposição pública. A verdade muitas vezes não consegue levar à justiça.” Em uma entrevista em podcast no começo desse ano com Fabiano Angélico, da Transparência Brasil, ele faz ressoar o raciocínio de Fox, alegando que os políticos brasileiros que repetidamente foram depostos como corruptos continuam sendo reeleitos, muitas vezes por causa da corrupção. Nestes casos, Angélico advoga que juízes especiais e definidos, com históricos comprovados, devem barrar repetidamente os políticos corruptos da candidatura por um cargo. Isso vai de encontro a noções clássicas de democracia liberal: na qual os cidadãos devem fundamentalmente exigir responsabilidade de seus líderes ao apoiar ou removê-los dos cargos no dia das eleições. Mas Guillermo O'Donnell apoia a proposta de Angélico, notando que as democracias modernas requerem ambos a “responsabilidade vertical”, como nas eleições, e a “responsabilidade horizontal”, como nas agências reguladoras entre governos que têm o poder de sancionar políticos que não cumprem a lei.

Um outro exemplo de transparência que falha em promover a responsabilidade pode ser encontrado na Libéria, onde a Presidenta Ellen Johnson-Sirleaf estabeleceu a Comissão de Verdade e Reconciliação (TRC, na sigla em inglês) em 2005, modelado após uma comissão de verdade semelhante ao pós-Apartheid na África do Sul. O TRC é um tanto agente de prestação de contas horizontal, com a tarefa de investigar e publicar informações relacionadas a mais de 20 anos de conflitos civis no país, e sancionar os oficiais eleitos que foram envolvidos em crimes. Em junho de 2009, o TRC emitiu o seu relatório final, que nomeou 50 indivíduos – incluindo Johnson-Sirleaf – que deveriam ser barrados do serviço público por 30 anos por causa de seu envolvimento direto na guerra civil do país. A presidenta Johnson-Sirleaf, entretanto, continua no poder, ignorando as recomendações do TRC, enquanto implementa sua própria legislação de transparência e anti-corrupção. Apesar de seu passado polêmico, Johnson-Sirleaf ainda é vista por muitos como uma forte líder com um firme perfil internacional e que pode ajudar a Libéria a retornar à paz e democracia.

Muitos pesquisadores e observadores concordam que uma maior transparência não vai acarretar no aumento da responsabilidade, a menos que um engajamento cívico proativo seja modelado em torno da informação que é publicada. Vários dos projetos que nós documentamos objetivam usar as redes sociais para trazer esse engajamento. #InternetNecesario no México, por exemplo, usou uma combinação de Twitter, posts em blogs, e alcance na mídia para pressionar os legisladores mexicanos a eliminar um imposto de três porcento sobre o acesso à Internet que foi aprovado sem a consulta da mídia ou da sociedade civil. Este é um exemplo clássico de transparência com a participação cívica para promover a responsabilidade. O usuário do Twitter mexicano Alejandro Pisanty publicou informações sobre a recente aprovada lei que não estava anteriormente disponível. Um protesto online e descentralizado então aconteceu no Twitter e blogs, que agiram como filtros e adicionaram contexto, e petições de email para senadores mexicanos. A Câmara dos Deputados Mexicanos logo percebeu o tamanho e força da oposição ao imposto, e convidaram representantes do protesto para a Câmara a fim de que eles apresentassem seus argumentos contra o imposto, os quais já estavam sendo ensaiados online nas semanas anteriores. Entretanto, #InternetNecessario também (até agora) provou ser um fenômeno temporário que de nenhum modo constrói processos sistemáticos para continuar a promover a transparência ou tornar os líderes responsáveis no futuro. Cuidemos El Voto oferece um exemplo de projeto mais sustentado que objetiva prevenir a má conduta eleitoral – e especificamente a compra de eleitores – durante as eleições locais e federais. Ao firmar parceria com o Gabinete do Procurador Especial, estabelecido em 2002 pra documentar os abusos anteriores de direitos humanos, o Cuidemos El Voto obteve o aval oficial federal dos eventos documentados com a má conduta de eleitores. É difícil, entretanto, mensurar o impacto de tornar mais visível a compra de votos por políticos e partidos políticos, e ainda precisamos ver um exemplo de candidato ou partido que tenham sido barrados por má conduta política e que foram reportados em um website como o Cuidemos el Voto.

Outros líderes de projetos são céticos a respeito do aumento da discussão cívica levar ao aperfeiçoamento da governança. Vivek Gilani do Mumbai Votes diz que as discussões online tendem a ser baseadas em opiniões pessoais e fofocas, enquanto que seu projeto objetiva prover aos leitores uma avaliação clara e rápida baseada em fatos. Ele não deseja lhes prover um espaço de participação, mas sim um recurso para se melhor informar com o intuito de votar nos candidatos mais bem qualificados.

Como Promover a Responsabilidade?

Alguns dos websites que analisamos funcionam como portais onde os cidadãos podem listar suas reclamações – geralmente sobre sua comunidade, e especificamente relacionada a administração de suas comunidades pelo governo – para pressionar o governo a ser mais compreensivo com suas necessidades. Os exemplos incluem Ishki, na Jordânia, Kiirti, na Índia, e Penang Watch, na Malásia. Os vários objetivos e estratégias destes projetos apontam para uma distinção feita por Andreas Schedler entre duas diferentes dimensões da responsabilidade: por um lado, a capacidade ou direito de exigir resposta, e, por outro lado, a capacidade de sanção. É claro, como projetos locais, nenhum dos websites que analisamos têm a capacidade oficial para sancionar. Mas vários projetos buscam respostas em uma miríade de formas.

Ishki foi iniciado por quatro tecnologistas jordanianos que estavam cansados de escutar as mesmas reclamações a todo tempo sem nenhuma ação ou plano de ação. Eles criaram um website para coletar as reclamações dos cidadãos contra o setor público e privado como uma forma de melhor compreender e visualizar as reclamações mais comuns na sociedade jornadaniana. Sua estratégia é, portanto, trabalhar com organizações da mídia de massa – jornais e estações de rádio – para criar histórias sobre as reclamações recorrentes, com a esperança de que o aumento de cobertura na mídia pressionará os oficiais públicos a responder. Nesse sentido, Ishki serve como um filtro comunitário entre os usuários de internet em geral e a mídia de massa, buscando por histórias para reportar. Os usuários podem também enviar e assinar petições, apesar da mais recente petição ter sido postada há dois meses. Até agora, não encontramos exemplos de oficiais públicos que responderam às reclamações ou petições originadas no website.

Na Índia, o Kiirti assume uma abordagem diferente do Ishki. Em vez de depender da mídia impressa e de massa como instrumentos para pressionar os oficiais públicos, eles enviam emails diretamente às agências relevantes nas maiores cidades indianas para pedir que lhes respondam as reclamações enviadas ao Kiirti. Seu fundador, Selvam Velmurugan, diz que um poste de luz foi consertado e um escoamento de lama foi pavimentado por causa das reclamaçõs enviadas ao Kiirti. Pode parecer estranho enviar uma reclamação a um website, e esta ser retransmitida para a agência responsável, agir de forma mais efetiva do que enviar uma reclamação diretamente à própria agência em primeiro lugar. Certamente não é mais eficiente. Mas talvez a visibilidade pública de tais reclamações – e as respostas pelos oficiais a tais reclamações – seja um incentivo para os oficiais públicos reagirem. Eles são, portanto, levados a mostrar não somente a demanda de seu trabalho, mas a sua prestatividade em dar respostas.

No noroeste da Malásia, Penang Watch leva a agenda de responsabilidade um pouco mais adiante com uma série de passos para se comunicar com oficiais municipais – e acompanhá-los – até que as reclamações dos cidadãos sejam respondidas. As reclamações enviadas ao PenangWatch.net são primeiro verificadas por uma equipe de voluntários, e então encaminhadas para uma autoridade e/ou indivíduo relevante para responder ou solucionar a reclamação. Se não houver resposta no prazo de uma semana ou duas, então um lembrete é enviado. Se a reclamação ainda não houver sido tratada em mais duas semanas, então um perfil da reclamação é destacado no website e a agência/indivíduo negligente é “nomeada e envergonhada” na página, e através de emails a todos os departamentos do conselho e organizações de mídia. O coordenador do projeto, Ong Boon Keong, diz que “aproximadamente 300 reclamações são enviadas através do Penang Watch por ano” e que até agora eles puderam “resolver 50 porcento das reclamações enviadas.” Lojas ilegais na área de patrimônio histórico mundial da UNESCO em Penang foram fechadas por causa das reclamaçõs enviadas ao website.

Trabalhando Com o Governo, Não Contra

O coordenador do Penang Watch, Ong Boon Keong, é ansioso em apontar que o website objetiva melhorar a performance do governo local ao “provê-lo com pareceres positivos e negativos.” Alguns observadores, tais como Archon Fung, estão preocupados que a natureza adversária de muitos websites de transparência e responsabilidade possam corroer a confiança nos governos e instituições, e apresentem o governo como mais ineficiente e um desperdício do que é verdade. Outros dizem que a constante de reportar sobre escândalos dessensibiliza as pessoas em relação às verdadeiras instâncias da corrupção no governo. Há ainda sugestões que em novas democracias, reportagens de vigilância podem levar à insatisfação com a democracia em si, gerando motins e caos.

The effect of governmental transparency that is about accountability may be simply to make that problem worse, to further de-legitimize government, because what the transparency system is doing is helping people catch government making mistakes. That's good. You do want to catch government making mistakes. But you want transparency and information systems that also highlight when government is doing a good job.

Much of the current activity around governmental transparency is like creating a big Amazon rating system for government that only allows one- or two-star ratings. But that's not necessarily the case. You could also construct governmental transparency systems that provide the full five-star range.

O efeito da transparência governamental sobre a responsabilidade pode ser para simplesmente tornar o problema pior, e remover a legitimidade do governo ainda mais, pois o que o sistema de transparência está fazendo é ajudar as pessoas a pegar o governo fazendo erros. Isso é bom. Você realmenter quer pegar o governo em erros. Mas você quer transparência e sistemas de informação que também evidenciem quando o governo está fazendo um bom trabalho.

Muito da atividade atual em torno da transparência governamental é como a criação de um grande sistema de avaliação do Amazon (site de compras online) para o governo que somente permite uma ou duas avaliações de estrela. Mas este não é necessariamente o caso. Você também pode construir sistemas de transparência governamental que forneçam o sistema completo de cinco estrelas.

De fato, encontramos muitos websites que se empenham em evidenciar as piores ações dos funcionários corruptos, mas poucos (se houve algum) que recompensaram performances efetivas e registros limpos. No futuro, recomenda-se que os sites de transparência e responsabilidade equilibrem as críticas às performances pobres do governo e celebrem o que seja válido para ser duplicado.

Responsabilidade Versus Auto-Governança

Os trinta estudos de casos que reunimos até agora ilustram tanto o potencial e a extrema dificuldade em promover a responsabilidade (seja em forma de respostas ou sanções) ao modelar o engajamento cívico sobre informação pública. Mas, e novamente, a responsabilidade não é o único objetivo declarado de vários dos projetos que analisamos. Além de exigir melhor performance do governo, plataformas como Cidade Democrática também podem facilitar a melhor auto-governança da comunidade, não dependendo de funcionários públicos ou agências com poucos funcionários. Como outros websites para reclamações que analisamos, o Cidade Democrática permite aos cidadãos brasileiros listarem problemas relacionados às suas municipalidades. Outros usuários são, então, encorajados a listar soluções potenciais aos problemas e rascunhar estratégias e planos de ação. Até agora, soluções de sucesso dependeram do envolvimento do governo, mas no futuro pode-se prever que jardins comunais, calçadas, e até mesmo programas de reciclagem poderão ser coordenados pelos cidadãos sem o envolvimento do governo.

De modo semelhante, fomos informados pelo co-fundador do Map Kibera, Mikel Maron, que um estudo do Banco Mundial descobriu que moradores de Kibera pagam cerca de dez vezes mais pela água do que uma pessoa comum em um bairro rico de Nairobi com serviço de medição e abastecimento público. Voice of Kibera pôde ser usado como uma plataforma para peticionar que o governo e líderes tribais decretassem medidas que diminuíssem o preço da água. Entretanto, pôde também ser usado como uma visualização do preço diário da água como um incentivo para trazer novos fornecedores ao bairro, o que aumentaria a competição e diminuiria os preços. Em outras palavras, estas plataformas podem ser usadas pelos cidadãos para pressionar seus governos, mas também podem ser usadas pelos cidadãos para melhorar diretamente as suas comunidades sem depender dos oficiais públicos.

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