Um preso político no Brasil democrático (parte 2)

 

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Ato no Rio contra aumento da passagem na Av. Presidente Vargas pede libertação de Igor em 16/01/2015. Foto: Ellan Lustosa (CC-BY-ND)

Esta reportagem foi produzida por Anne Vigna, da Agência Pública, e publicada originalmente em seu respectivo site. É reproduzida pelo Global Voices em duas partes via parceria de republicação. Leia também a primeira parte da matéria.

 

Contra Igor Mendes, existe apenas o testemunho de Felipe Braz: quando os policiais foram à sua casa para detê-lo no dia 12 de julho, não encontraram nada que o comprometesse. Levaram um livro, um boné e um celular velho. Ficaram quatro horas com a mãe dele, que estava sozinha em casa (Igor tinha saído), interrogando-a de forma totalmente ilegal.

“Neste momento, eu não conhecia ninguém do movimento. Os policiais vasculharam a casa, me mostraram fotos, me ameaçaram por causa de minhas negativas”, conta hoje a mãe de Igor. Desde esse dia, Jandira Mendes está em tratamento psicológico, diagnosticada com síndrome de pânico.

Ela foi a única parente dos presos a ser ameaçada pelos policiais, mas “quase todos os pais continuam a despertar a cada manhã com o medo que sentiram no dia 12 de julho de 2014 ao encontrar a polícia em casa”, diz outra mãe. Os pais se reuniram em um coletivo para tentar entender o que seus filhos fizeram de errado: “Levou um tempo para a gente entender que eles estavam apenas lutando por uma sociedade melhor, o que normalmente é respaldado pela Constituição”.

Igor foi finalmente detido em 3 de dezembro de 2014 por desrespeitar as medidas cautelares (ele estava impedido de participar de reuniões públicas) impostas pelo habeas corpus obtido por seu advogado em julho de 2014. Ele participou de um festival cultural do Dia do Professor (15 de outubro) na Cinelândia. Igor ficou 42 dias preso na “triagem”, até o dia 15 de janeiro deste ano. Ficou sozinho em uma cela, sem poder ver a família nem seu advogado, impedido de receber qualquer papel, inclusive livros.

“Foragidas”

 

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Manifestante com rosto protegido durante protesto. Foto: Ellan Lustosa (CC-BY-ND)

Elisa de Quadros é hoje considerada “foragida” da Justiça. Depois da prisão de Igor, ela, que havia participado do mesmo festival, desapareceu, assim como outra ré do mesmo processo, Karlayne Moraes da Silva Pinheiro. Enquanto Igor só aparece no tomo 3 do inquérito com o depoimento de Felipe Braz, Elisa – que se tornou conhecida pelo apelido “Sininho” –  consta do inquérito desde o início. A revistaVeja a elegeu como símbolo do “black bloc” carioca desde as primeiras manifestações de 2013, o que chamou atenção da polícia.

Elisa também foi considerada líder do movimento pela polícia porque, além de Felipe Braz, Anne Josephine Rosencrantz a denunciou (dir.). Felipe declarou que Elisa decidiu queimar um ônibus quando estava em uma barraca do movimento “Ocupa Câmara”, enquanto Anne Josephine disse ter ouvido Elisa “mandando manifestantes buscarem três galões de gasolina” para incendiar a Câmara.

Quem é Anne Josephine? Uma menina de 21 anos que namorava um rapaz que se tornaria namorado de Elisa durante as manifestações. Anne Josephine descobriu o namoro através de uma foto das manifestações publicada na imprensa. Uma cena de novela que seria engraçada se não fosse trágica.

Felipe e Anne Josephine não tiveram dúvidas em identificar os líderes: Igor e Camila na FIP, Elisa no movimento “Ocupa Câmara”; já a PM não teve a mesma sorte ao procurar líderes para poder negociar a retirada da ocupação. Durante uma audiência sobre “o direito à manifestação” em 28 de abril passado, o coronel Rocha, que comandava o Batalhão de Choque da PM em outubro de 2013, explicou suas dificuldades em contatar o movimento: “Como não havia líderes, não sabíamos com quem negociar”.

Em suas alegações finais, o promotor Leonardo Barbosa aponta duas folhas encontradas na casa de Elisa com a frase “atacar prédios públicos” como prova das acusações contra os 23 suspeitos. Mas, na realidade, essas folhas não existem, segundo o advogado Marino D’Icarahy: “O Ministério Público foi pouco cuidadoso ao verificar as provas. Essas folhas estão mencionadas em um relatório da polícia, mas não existem como prova material”.

E aí vamos à explicação sobre as bombas citadas no inquérito. Quando Camila foi detida, a polícia afirmou ter encontrado em seu quarto uma sacola plástica com “duas bombas de fabricação caseira”. Chama atenção, no entanto, a falta de cuidado da polícia com essa prova. Em vez de realizar a perícia no instituto especializado em criminalística (ICCE), a polícia apresentou um laudo feito pela Polícia Civil no mesmo dia 12 de julho (abaixo), o que invalidaria a prova na Justiça.

Por que não tomar todas as precauções com essa que seria a prova da violência? Essas bombas nem sequer existem mais. Como explica o laudo, “depois de analisado o material, foi destruído tendo em vista do perigo que representa o seu armazenamento”. Todos os pedidos de entrevista feitos pela reportagem à Polícia Civil, ao juiz e ao promotor foram negados.

 

Advogados Ativistas

Outro aspecto que chama atenção no inquérito é a predisposição negativa da polícia em relação aos “advogados ativistas”, em particular contra o Instituto de Defensores de Direitos Humanos (IDDH). Eles foram investigados, acompanhados no Facebook, grampeados, até que, por fim, conseguiram processar uma advogada com base em uma declaração repleta de erros feita por um policial infiltrado.

Desde as primeiras páginas do inquérito, o IDDH é colocado como suspeito. Primeiro afirmam que esses advogados são “militantes políticos ideologicamente alinhados com ações extremas”. Como prova dessa afirmação, anexaram fotos extraídas da página de Facebook da advogada Luiza Marinho em reuniões com militantes do PSOL, um partido legalmente estabelecido.

Outra “prova” apresentada é uma reportagem da revista Veja que cita uma doação em dinheiro – declarada e oficial – feita pelo IDDH à campanha de Marcelo Freixo (PSOL) (dir.). A partir desses “elementos”, a Justiça autorizou a escuta de três telefones do instituto. Os advogados alegam que continuam grampeados, agora de maneira ilegal.

Eloísa Samy, 46 anos, é a única advogada processada pela Justiça até o momento. Militante de direitos humanos há mais de 20 anos, ela assume ter participado das manifestações, primeiro como cidadã, depois como advogada.

“No começo das manifestações de junho de 2013, eu participei como cidadã. Mas no dia 20 de junho houve uma manifestação com mais de 1 milhão de pessoas em uma passeata na avenida Presidente Vargas. Lá, chegando no final, perto da prefeitura, os manifestantes foram atacados e perseguidos pela tropa de choque da PM por mais de 5 km até o bairro da Lapa. Teve gente que ficou sitiada pela PM em duas faculdades federais. A PM cortou a luz dessas duas instituições e os policiais montados ficaram na porta. Esse dia me fez decidir que eu seria mais útil como advogada do que como manifestante”.

Contra Eloísa, a polícia apresentou o depoimento do policial Maurício Alves da Silva, assumidamente infiltrado nas manifestações, que disse ter filmado tudo. Segundo o policial (leia seu depoimento abaixo), “no dia 13 de junho” (na realidade 12 de junho), ele disse ter ouvido Eloísa dizer “que estava na hora de começar a confusão” e que ela “dava ordens para os Black Blocs praticarem atos de violência”. Daí se concluiu que a advogada era líder da manifestação. Só que nesse dia a manifestação foi pacífica. E justo nesse dia o policial infiltrado não filmou nada.

Fernanda Vieira, advogada do coletivo Mariana Criola, que defende seis dos 23 réus do processo, diz:  “Seria muito longo enumerar todas as críticas que temos a esse inquérito. Por exemplo, um dos réus não é citado por ninguém. Só teria uma foto dele com outro réu no Facebook; o MP diz que ele estava armado; na verdade, era uma espada de brinquedo. Isso nos preocupa muito, o MP não verificou nada. Consideramos que existia uma presunção de responsabilidade, de pegar uns militantes para desmobilizar o ânimo das manifestações.

Outro ponto crucial: embora os 23 réus respondam pela acusação de “associação criminosa agravada por uso de arma” (além de Camila e seu namorado terem sido acusados por posse de explosivos), não aparece arma alguma no inquérito, com uma única exceção: na casa de duas rés (irmãs), havia uma arma que pertence ao pai delas, segurança privado, que tem autorização para o porte. Mais uma das graves lacunas do inquérito que mantém Igor na prisão e Elisa de Quadros Pinto Sanzi e Karlayne Moraes da Silva Pinheiro, que tiveram prisão preventiva decretada, na condição de foragidas da Justiça desde dezembro de 2014.

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