Em iniciativa inédita, polícia vai à Maré dar explicações sobre a chacina de junho de 2013

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Operação policial no Complexo da Maré em 2013 deixou 10 mortos: um sargento e nove moradores. Foto por Agência Pública CC BY-ND

Em iniciativa inédita, a Divisão de Homicídios da Polícia Civil do Rio de Janeiro fez uma audiência pública no Complexo da Maré para prestar conta aos moradores sobre a operação policial realizada no local nos dias 24 e 25 de junho de 2013, que deixou nove pessoas mortas e vários feridos. A audiência contou com a presença de moradores, lideranças e representantes de organizações da sociedade civil e foi acompanhada pelo Global Voices.

Apesar de reconhecerem o mérito da iniciativa, os moradores não se mostraram completamente satisfeitos com as explicações da polícia. À época, eles relataram ações abusivas e violentas dos policiais, como invasão de casas sem mandado de busca, abordagens truculentas e ameaças.

A referida operação aconteceu durante a Copa das Confederações, em 2013, no mesmo período das manifestações que sacudiram o Brasil naquele ano. Um protesto pacífico na Praça das Nações, no bairro periférico de Bonsucesso, acabou tornando-se um tumulto. Após um “arrastão” (quando várias pessoas praticam roubos e furtos em conjunto, durante um engarrafamento ou em um local de grande aglomeração de pessoas) na Avenida Brasil e a detecção de disparos vindos do Complexo da Maré, o Batalhão Especial da Polícia Militar (Bope) foi acionado. Ao entrarem na comunidade, a pé, o sargento Ednelson dos Santos, 42, foi morto por um tiro de fuzil na cabeça e outro na perna, possivelmente vindos de uma laje na favela.

Foto por Fabiano Post. Contenção. Imagens do helióptero da polícia, antes de ser autorizada a operação.

Durante a audiência, polícia apresenta imagens feitas do seu helicóptero, mostrando um possível grupo armado na Maré, pouco antes de ser autorizada a operação. Foto por Fabiano Post.

Esse foi o estopim para que o comando da polícia militar autorizasse uma ação que se tornou traumática para os moradores. O Bope ocupou a favela até o dia seguinte. Segundo a polícia, o objetivo era somente prender o autor dos disparos, mas moradores relataram diversos abusos por parte dos policiais, além do assassinato das nove pessoas.

Disse o fotógrafo Bira, uma das lideranças da favela, à reportagem da Agência Pública:

O que eu ouvi foi sobre a brutalidade do Estado, o desrespeito, as casas invadidas. As pessoas foram mortas em casa. A morte de um policial gerou uma chacina aqui.

O morador W. declarou na mesma matéria:

O que aconteceu aqui foi uma coisa inédita. Foi uma arruaça. Muito tiro. Um dos policiais viu uma vizinha que estava na janela, parou na porta dela e gritou ‘tu não vai sair não né, sua piranha? Se eu subir ai vou botar tu pra mamar’. Eles passam um medo muito grande. As crianças ficam aterrorizadas.

A ação também foi fortemente criticada por Átila Roque, diretor executivo da Anistia Internacional no Brasil:

Uma operação policial com dez mortos não pode ser considerada bem sucedida. A polícia não pode tratar a favela como se ali fosse um território de exceção, é preciso romper a lógica da guerra. As pessoas que vivem na favela precisam ter seus direitos reconhecidos, os criminosos são uma minoria. Uma atuação mais cuidadosa da polícia certamente evitaria a morte de muitos inocentes. 

Cinco mortes já foram concluídas como “auto de resistência”

Moradores da Maré protestam no dia seguinte à chacina, em 2013. Uma faixa diz: "A polícia que reprime na avenida é a mesma que mata na favela". Foto por Equipe Marcelo Freixo (Flickr) CC BY 2.0

Moradores da Maré protestam no dia seguinte à chacina, em 2013. Uma faixa diz: “A polícia que reprime na avenida é a mesma que mata na favela”. Foto por Equipe Marcelo Freixo (Flickr) CC BY 2.0

Realizada um ano e meio depois, no último dia 4, a audiência pública contou com a presença do delegado Rivaldo Barbosa, que está à frente das investigações. O delegado analisou as mortes separadamente e enfatizou que cada uma delas tem inquérito próprio. Segundo a Polícia Civil, esta foi a maior reconstituição de cena de mortes já realizada na cidade, com duração de 17 horas.

A polícia concluiu cinco dos nove casos como “auto de resistência” — quando a morte ocorre em confronto com a polícia. Um deles é o do jovem Jonatha Faria da Silva, 16, que, segundo a DH, foi morto atrás de um poste portando uma pistola 9mm, duas munições 9mm e um rádio transmissor.

André Gomes de Souza Junior, 18, Fabricio Gomes Souza, 28, e Carlos Eduardo Silva Pinto, 23, foram mortos dentro de uma casa, na qual foram constatadas marcas de tiros vindos de dentro para fora, segundo a perícia. Também foram encontrados fuzis com os jovens. Apesar de uma equipe da ONG Redes da Maré ter colhido relatos de que os três sofreram tortura antes de serem assassinados, essa possibilidade foi descartada pela perícia, que concluiu não haver marcas nos corpos.

Renato Alexandre Mello da Silva, 39, foi alvejado e morto, com um único tiro, em uma casa de “endolação” (local onde o tráfico embrulha cocaína e maconha).

Segundo o delegado assistente da DH Ginitom Lages, a investigação e sua conclusão já foram enviadas para o Ministério Público para avaliação:

Tudo foi levado ao Ministério Público para aceitação ou não. Nossa conclusão é essa.

O delegado ressaltou que é necessário acabar com o medo e a desconfiança entre população e polícia para que testemunhas possam ajudar a resolver as outras quatro mortes restantes: Ademir da Silva Lima, 29, José Everton Silva de Oliveira, 21, Roberto Alves Rodrigues, 23, e Eraldo Santos da Silva, 35.

Este último era garçom e foi morto enquanto trabalhava em um bar. O tiro de fuzil teria transpassado Eraldo, na cabeça, atravessado uma geladeira e uma parede. O projétil nunca foi encontrado pela balística. Segundo o perito criminal Denilson Soares, cinco policiais estão sendo investigado pela morte de Eraldo, mas a falta do projétil seria a maior dificuldade para se chegar ao autor do disparo e encerrar o caso.

Durante a audiência, um dos fundadores da ONG Redes da Maré, Alberto Aleixo, afirmou ter acompanhado as investigações junto com a polícia e visto as cenas dos crimes maculadas no dia seguinte à chacina.

Soube através testemunhas oculares que o projétil da bala que matou o garçom Eraldo foi recolhido por soldados do Bope. O Bope entrou para matar, já que, absolutamente, nenhuma prisão foi efetivada.

A moradora Nilzete Crisóstomo, que teve o marido baleado durante a ação, também deu seu depoimento na audiência. Cláudio Duarte Rodrigues foi alvejado quando chegava à comunidade, dirigindo sua van, e foi socorrido por um morador. Segundo ela, o Caveirão “fuzilou” a van do seu marido e não prestou socorro. Ao ouvir seu testemunho, o delegado intimou a moradora a comparecer à delegacia para prestar depoimento formal.

Um primeiro passo?

Foto por Fabiano Post.

Cartaz distribuído pela ONG Redes da Maré, para ser preso nas portas das casas do moradores da comunidade. Foto por Fabiano Post.

Eliana Sousa Silva, diretora da Redes da Maré e uma das idealizadoras do encontro, entendeu que a primeira vinda da DH à comunidade poderá ter resultados a longo prazo e pode servir como um estímulo à construção de uma nova relação da polícia com a população.

Sem inteligência e investigação, esse processo de violência não será interrompido. Mas, além das mortes ocorridas, houve violações de direitos humanos naquela noite, como invasões de casas, portas quebradas, pertences revirados, abordagens truculentas e ameaças. Ouvi eu mesma de um policial, no dia seguinte: ‘a gente não sai daqui enquanto não matar não-sei-quantos’. É preciso refletir sobre esse tipo de declaração para que ocorram mudanças relevantes na relação da polícia com a comunidade.

A socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Cesec (Centro de Estudos e Cidadania da Universidade Cândido Mendes), também considera histórica a vinda da polícia, por meio da DH, para dar esclarecimentos à população da Maré:

É uma quebra de paradigma. Há muito a ser feito, quase sempre a polícia se justifica dizendo que está matando criminosos. A polícia existe para executar prisões, e não matar. A polícia do Rio de Janeiro é a que mais mata e morre e deve existir pressão da comunidade nesses casos. Veja por exemplo o caso da cidade de Ferguson nos EUA, de maioria negra, onde a policia de maioria branca matou um jovem negro. Lá o povo foi as ruas e exigiu explicações. As pessoas exigindo seus direitos é o que faz o Estado acordar.

Confira o vídeo da audiência pública:

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