Quem matou Fabiane: como um boato na internet assassinou uma dona de casa no Brasil

No sábado, 03 de maio, Fabiane Maria de Jesus, 33 anos voltava para casa no bairro Morrinhos, periferia do Guarujá, litoral de São Paulo. A dona de casa, mãe de duas filhas – uma de 12 e outra de 1 ano – sofria de transtorno bipolar, mas com o tratamento estava bem. Enquanto Fabiane voltava da igreja, onde havia ido buscar sua bíblia, um grupo de cerca de cem pessoas começava a se reunir para atacá-la. Depois de amarrarem as mãos da mulher com fios telefônicos, durante duas horas, ela foi espancada e arrastada pelas ruas. Socorrida por policiais militares, dois dias depois do ataque, Fabiane não aguentou e acabou falecendo

Fabiane Maria de Jesus, a dona de casa assassinada no Guarujá pelo falso boato. Fonte: Wikipédia

Fabiane Maria de Jesus, a dona de casa assassinada no Guarujá pelo falso boato. Fonte: Wikipédia

O motivo da raiva coletiva foi um boato publicado na página de serviços e informações policiais Guarujá Alerta, no Facebook, sobre uma mulher que estaria sequestrando crianças na região, para usá-las em rituais de magia negra. Dias antes do linchamento, a página, que tem mais de 24 mil seguidores, chegou a postar por algumas horas o retrato falado da suposta sequestradora. No entanto, como publicado na mesma página, nenhum desaparecimento ou sequestro de crianças havia sido registrado pela polícia local. Mas já era tarde demais. O conto de sequestradora de crianças já havia saído da internet e se tornado uma caçada pelas ruas da cidade.

O retrato divulgado pela página foi feito em 2012, pela polícia do Rio de Janeiro, durante investigação do caso de uma mulher que tentou roubar um bebê do colo da mãe. Um mês antes da morte de Fabiane, o mesmo desenho foi divulgado em Recife, Pernambuco, relacionado a outro caso de sequestro de crianças. 

Fabiane nasceu e viveu toda sua vida no bairro Morrinhos, onde moravam também grande parte de seus familiares. Mas nada disso impediu sua morte, que se somou a uma série de casos de linchamento ocorridos no país desde o início do ano.

 “A culpa não é de ninguém! A culpa é da internet!”

Captura de ecrã de um vídeo que circulou na internet.

Captura de ecrã de um vídeo que circulou na internet.

Através de vídeos gravados durante o linchamento, a polícia conseguiu identificar seis suspeitos do linchamento. Segundo o jornal A Tarde, um grupo de amigos de um dos suspeitos que se reuniu para protestar diante da delegacia gritava:

Quer prender todo mundo? A culpa é de todo mundo! A culpa é de ninguém! A culpa é da internet!

Na rede, as reações que seguiram o caso criticaram a página do Facebook que divulgou a falsa informação. Usuários acusaram os administradores de serem “tão culpados quanto quem agrediu e matou” e terem “as mãos sujas de sangue”. O responsável pela página chegou a prestar depoimento e se colocou à disposição da polícia para ajudar nas investigações, mas disse “não ter nenhuma responsabilidade” na história da “suposta sequestradora de uma enorme mentira que inventaram na cidade”.

Porém, como lembra Luiz Francisco Carvalho em um artigo sobre o assassinato de Fabiane:

O caso do Guarujá mostra que a internet potencializa a reação histérica de massas. A repulsa eventual e a punição de um ou outro envolvido não são capazes de conter a epidemia.

Além da rede, a função da mídia tradicional também foi levantada diante da onda de linchamentos. O deputado estadual do Rio de Janeiro, Marcelo Freixo, escreveu em sua página do Facebook:

Maior é a responsabilidade daqueles que usam seus espaços privilegiados de fala, como programas de TV, para incentivar e, em certa medida, legitimar esses atos bárbaros. Foi o que ocorreu quando moradores do Flamengo agrediram e prenderam um adolescente negro a um poste, em fevereiro deste ano.

Em fevereiro, Rachel Sheherazade, âncora de um telejornal, chegou a ser acionada no Ministério Público por dizer em rede nacional que os atos de justiça com as própria mãos eram “compreensíveis”, em reação ao caso do menor preso a um poste no Rio de Janeiro, reportado pelo Global Voices.

Para o professor de Comunicação da Universidade de São Paulo (USP), Eugênio Bucci:

A imprensa é uma instituição que busca não difundir, mas investigar os boatos, a partir de uma postura crítica. A imprensa, sim, pode e deve ser cobrada quando desobedece a esse imperativo. As redes sociais não têm esse compromisso. É claro que o aprendizado social com o uso das novas tecnologias imprimirá às redes uma série de novos cuidados. Elas tenderão a ser passíveis de responsabilizações, e tenderão a ter de observar parâmetros que talvez as aproximem um pouco da ética da imprensa, mas ainda estamos muito longe disso. Ainda vivemos um tempo em que muita gente toma por verdade comprovada qualquer tolice que apareça numa tela eletrônica. Mais ainda: no Brasil, vivemos um tempo em que as pessoas premidas por demandas mais dramáticas estão deixando de acreditar nas instituições, na justiça, no bem comum, no poder público. O ódio e a pressa, juntos, produzem o caos.

Um pouco além da fúria

Fabiane era inocente de um crime que nem sequer existiu, mas, como perguntou o jornal El País: “e se ela fosse culpada?”. Ainda assim a barbárie de sua morte chocaria o país? Uma semana depois da morte de Fabiane, uma manicure de 26 anos foi torturada e assassinada por um grupo de homens, também no interior de São Paulo. A primeira versão dava conta que o motivo do crime havia sido o furto de um pacote de biscoitos, depois um dos suspeitos disse que ela havia roubado 27 mil reais de sua casa. 

As mortes por linchamento nas periferias do Brasil tem levado a uma série de reflexões sobre o retrato do país. Para a pesquisadora Ariadne Natal, do Núcleo de Estudos sobre Violência, da Universidade de São Paulo:

não é qualquer pessoa que pode ser desumanizada e, portanto, linchada. As potenciais vítimas de linchamento carregam consigo a marca daquele que pode, em última análise, ser eliminado.

O que já indica a vulnerabilidade de uma classe social para ser alvo de tais atos. Dentro da classe média, que também comete crimes, há “uma rede de proteção mais eficiente”, aponta ela. Enquanto todo o país tenta fazer algum sentido das tragédias, mesmo que a falência das estruturas democráticas também esteja por trás dos atos, Ariadne lembra:

Numa democracia, o que se espera é que as pessoas se mobilizem para melhorar as instituições e não para fazer justiça de forma sumária, sem dar aos suspeitos o direito à defesa. E, com isso, no afã de tentar fazer uma suposta justiça, comete-se grandes injustiças. E mesmo que a vítima tenha de fato cometido algum crime, isso não diminui o aspecto lamentável de um linchamento.

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