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‘Leilão da Resistência’ é realizado por ruralistas para financiar ações contra indígenas

Categorias: América Latina, Brasil, Direitos Humanos, Governança, Guerra & Conflito, Indígenas, Lei, Mídia Cidadã, Política

Um leilão agrícola foi realizado [1] por ruralistas no Mato Grosso do Sul no último dia 7 de dezembro, com o objetivo de levantar fundos para financiar o que eles chamaram de “resistência” às ações de ocupação de terras e reivindicação de direitos dos indígenas no estado.

Cartoon de Carlos Latuff, partilhado por Combate Racismo Ambiental no Facebook [2]

Cartoon de Carlos Latuff, partilhado por Combate Racismo Ambiental no Facebook

O leilão chegou a ser suspenso pela justiça [3] no início de dezembro, mas por conta da pressão dos ruralistas – que conseguiram afastar a juíza ao questionarem judicialmente a sua imparcialidade e independência – foi logo depois liberado [4] por um outro juíz nomeado para substituir a primeira num espaço de apenas três horas. A manobra foi considerada ilegal pelos advogados defensores dos direitos indígenas que apontam que o pedido de suspeição perante a Justiça deveria levar à suspensão do processo até que a suspeição fosse julgada. 

A decisão da primeira juíza argumentava que “o comportamento por parte [dos fazendeiros] não pode ser considerado lícito, visto que pretendem substituir o Estado na solução do conflito existente entre a classe ruralista e os povos indígenas” e que “tem o poder de incentivar a violência (…) e colide com os princípios constitucionais do direito à vida, à segurança e à integridade física”.

O evento contou com a participação de diversos políticos, entre prefeitos, deputados estaduais e deputados federais. Kátia Abreu, senadora líder da bancada ruralista e presidenta da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), afirmou que o objetivo do leilão não era financiar milícia [5] para combater e matar índios, como denunciaram [6] defensores dos direitos dos indígenas. A senadora, porém, não explicou qual seria o objetivo do evento.

Algumas frases [6] dos políticos participantes do evento, embora com uma linguagem eufemística, dão uma ideia dos objetivos dos ruralistas, como a do deputado estadual Zé Teixeira, do DEM:

Há anos os produtores gastam com as invasões. Se o banco tem um segurança na porta, por que a fazenda não pode ter? Esse leilão é um alerta para mostrar que o setor produtivo não vai esperar pelo poder publico e precisa de segurança

A situação dos povos indígenas [7] no Mato Grosso do Sul é alarmante, um problema que se arrasta há décadas, sem que o governo brasileiro traga uma solução, com a garantia dos direitos dos povos indígenas a ocupar suas terras, um direito inalienável. O constante ataque aos indígenas no estado, cuja etnia majoritária é a Guarani Kaiowá, com o assassinato de diversas lideranças e a imposição de péssimas condições de vida a este povo, provocou ondas de manifestações no Brasil e no mundo [8]. Um dos assassinatos ocorreu recentemente, e ganhou destaque com a divulgação [9] pela organização Survival International.

O uso das mídias sociais para divulgar a causa indígena e a situação alarmante em que muitos grupos indígenas vivem ocorre não somente por parte de ONGs, como também e cada vez mais pelos próprios indígenas, como analisou Raquel Recuero no artigo Social Media: Brazil's Indigenous Tribes Go Online in their Struggle To Be Heard [10] (Redes sociais: tribos indígenas do Brasil seguem online com luta para serem ouvidos).

A falta de interesse político por parte dos grupos que dominam o governo parece ser um dos principais motivos pelos quais o problema não é resolvido no MS e em outras regiões do Brasil, como destacou [11] o pesquisador do Imazon Paulo Barreto:

O argumento de falta de terras é uma falácia, pois existem 58,6 milhões de hectares de pastos degradados em fazendas [12] que poderiam ser utilizados para reassentamento e para aumentar a produção fora de TIs. O governo teria dinheiro disponível caso priorizasse a solução dos conflitos. Por exemplo, bastaria eliminar ou reduzir os 22 bilhões de reais que concede de subsídios anuais [13] a grandes empresas e eliminar os cerca de 70 bilhões de reais perdidos anualmente para a corrupção [14]. A demora das decisões judiciais atrasa o processo, mas mesmo quando obtida uma decisão final favorável aos índios, não há garantias quanto ao tempo de sua execução. Por exemplo, os índios da TI Alto Rio Guamá [15] aguardam o fim da desintrusão desde 2010.

O judiciário brasileiro chegou a chamar os indígenas que lutam por seus direitos de guerrilheiros [16].

"Homenagem" ao ministro José Eduardo Cardozo

Imagem de “homenagem” ao Ministro da Justiça José Eduardo Cardozo [17], com o rosto no lugar de uma estátua de um ‘bandeirante’, figura representativa da colonização brasileira. Do Facebook de Marcelo Zelic, com a descrição:
“Exposição Brasilidade Indígena: Grandes Vultos do Século XXI
Obra: Novo busto de José Eduardo Borba Gato Cardozo”

A blogueira Camila Pavanelli chama a atenção para a moral dúbia de alguns políticos, que se evidenciou com a realização do leilão, no texto Quebrar vidraça é vandalismo, atirar em índio não [18]:

Para a Senadora Kátia Abreu, por exemplo, foram autoritárias e antidemocráticas as manifestações populares contra o Código Florestal e contra a presença da Polícia Militar na USP [19]

(…) o leilão foi organizado para “arrecadar recursos contra ocupações indígenas”.

Em bom português, o dinheiro arrecadado será usado para comprar armas – que, por sua vez, serão usadas para atirar em índios.

A mensagem de Kátia Abreu e seus amigos é bem clara:

Quebrar vidraça – não pode, é vandalismo.

Criticar o governo sem quebrar vidraça – também não pode, é autoritarismo.

Atirar em índio – ah bom, aí pode sim.

Líderes indígenas [20] e sindicalistas [21] contrários ao leilão chegaram a ser ameaçados de morte, após a decisão da justiça de impedir o leilão.

O Tribunal Regional Federal manteve a decisão de permitir o leilão, porém impôs condicionantes [22] para a sua realização. O dinheiro arrecadado terá que ser depositado numa conta judicial e controlado pela justiça, e a utilização dos recursos arrecadados só poderá ser feita depois que a Justiça ouvir o Ministério Público Federal e organizações indígenas da região.

A deputada federal Erika Kokay (PT-DF) declarou [23] que o leilão representa um novo genocídio dos povos indígenas brasileiros:

Estamos observando um etnocídio, querem reeditar o genocídio do povo indígena. Isso (Leilão da resistência) é uma ousadia daqueles que se acham acima do Estado, da Constituição e da vida. É o patrimonialismo clássico. Eles pisoteiam na Constituição e na democracia.