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Activistas levadas à justiça em Portugal

Categorias: Europa Ocidental, Portugal, Ativismo Digital, Liberdade de Expressão, Mídia Cidadã, Mulheres e Gênero, Política, Protesto

Este artigo faz parte da nossa cobertura Europa em Crise [1].

Na sequência das sucessivas manifestações contra a austeridade em Portugal, a actuação da Polícia de Segurança Pública (PSP) e do Ministério Público (MP) tem sido fortemente questionada, após vários manifestantes e activistas terem sido alvo de processos criminais.

Myriam Zaluar, jornalista freelancer, professora e uma das fundadoras do movimento Precários Inflexíveis [2], foi constituída arguida e irá responder em tribunal pelo crime de desobediência qualificada, após ter organizado uma inscrição colectiva num centro de emprego de Lisboa, num acto simbólico de protesto para alertar para o desemprego em Portugal.

Myriam tornou-se conhecida nas redes sociais em 2011, por ter escrito uma carta aberta dirigida ao Primeiro Ministro, muito divulgada nas redes sociais [3], depois de este ter aconselhado os portugueses desempregados a emigrarem.

Apelo à solidariedade com Myriam Zaluar. Imagem divulgada por Artigo 21º [4]

Apelo à solidariedade com Myriam Zaluar. Imagem divulgada por Artigo 21º

Desta vez, Myriam quis demonstrar que os números de desemprego em Portugal são falseados, mas a Polícia entendeu que a acção constituiu uma manifestação não autorizada – apesar de ter envolvido apenas 4 participantes directos e a distribuição de alguns panfletos – e, portanto, que devia ter sido comunicada às autoridades com uma antecedência de 48 horas. Myriam rejeita a acusação e nega que tenha cometido qualquer crime.

O caso tem gerado uma acesa discussão online, por levantar questões como a limitação do direito à livre expressão, a definição de manifestação e o poder de intervenção da polícia em assuntos políticos. Para o Movimento Sem Emprego [5] (MSE), esta situação reflecte uma postura de intimidação das autoridades, com o objectivo de evitar que os cidadãos tragam para a rua as suas reivindicações. Comenta [6] Laura Fortuna Pinto através do seu Facebook:

Por mais vezes que leia o artigo, ñ consigo perceber o fundamento da acusação. Mas das 4 pessoas presentes no protesto foi a única a ser notificada? Este país está a ficar estranho!!!

Na data marcada para a primeira sessão em tribunal, que acabou por ser adiada, várias pessoas apareceram para dar o seu apoio a Myriam, numa manifestação [7]convocada através redes sociais e difundida pelos meios de comunicação tradicionais.

O caso de Mariana Avelãs

Caso semelhante se passou com Mariana Avelãs, do movimento Que se Lixe a Troika [8], constituída arguida na sequência de uma conferência de imprensa a anunciar a manifestação do passado 15 de Setembro [9], que levou milhares de pessoas às ruas em Portugal e Espanha contra as medidas de austeridade dos governos. Em finais de Novembro o P3 reportou [10]:

Segundo Mariana Avelãs, nesse dia, a PSP dirigiu-se aos 15 membros, que ergueram uma faixa do movimento, para pedir a identificação de uma pessoa, mas garantiram que “não haveria consequências”. (…)
Contudo, (…) “duas ou três semanas depois” foi informada de que “estava a ser alvo de denúncia de um crime”. A activista social confirmou ter sido constituída arguida a 8 de Novembro pelo crime de organização de manifestação não comunicada. (…)
Mariana Avelãs descreve a acção da polícia como uma tentativa de “criminalizar os movimentos” para dar a ideia de que são “terroristas e revolucionários”.

Paulo Jorge Vieira [11] ecoa a indignação de Mariana:

Parece ser uma anedota mas não o é. Assim se limita o uso do espaço público na sociedade portuguesa nos nossos dias. A situação é, no seu todo, demasiado grave e realmente limitadora do direitos de associação, manifestação ou simples encontro no espaço público das cidades portuguesas.

Pedras ou máquina fotográfica?

A grande manifestação de 14 de Novembro [12] que levou para as ruas milhares de europeus em protesto contra as medidas de austeridade acabou em Lisboa com alguns manifestantes a arremessar pedras [13], em frente à Assembleia da República. A resposta da PSP tem sido muito discutida na opinião pública, e alvo de críticas. Nos dias seguintes à manifestação, a polícia tentou identificar o maior número possível de manifestantes, recorrendo não só às imagens recolhidas pelos próprios agentes mas também aos vídeos postados por outros manifestantes no YouTube e ainda – num caso que terminou com a demissão do director de informação do canal público RTP – às imagens recolhidas pelos canais de televisão presentes no local.

Foi com incredulidade que Paula Montez [14], participante na manifestação, recebeu algum tempo depois a notificação do Ministério Público, em que era acusada de agressão à polícia. Num post muito difundido na internet [15] em meados de Dezembro, Paula relata:

Ontem apresentei-me no DIAP [Departamento de Investigação e Acção Penal] acompanhada de um advogado. Foi-me lido o auto de denúncia e mostradas imagens captadas na manifestação. As imagens todas elas de má qualidade e inconclusivas, mostram-me de braço no ar com um objecto na mão que os “denunciantes” referiram ser pedras. Na verdade o objecto que tenho na mão é nada mais do que a minha máquina fotográfica que costumo elevar devido à minha estatura ser baixa para captar imagens, como sempre tenho feito em todas as manifestações e protestos onde vou[…];além disso, na foto de qualidade duvidosa, onde se vê o meu braço erguido segurando o tal objecto (máquina fotográfica) pode-se ler na legenda que arremessei à polícia cerca de 20 pedras ou outros objectos…
Agora pergunto eu: se a PSP me identificou a arremessar 20 pedras e a colocar em causa a sua integridade física, por que não fui eu detida logo ali? Por que não fui de imediato impedida de mandar mais projécteis que pudessem atentar contra os agentes? Sim, como é possível ter sido vista a atirar coisas, contarem uma a uma as cerca de 20 pedras que eu não atirei, mas que alguém afirma ter-me visto atirar, e deixarem-me à solta para atirar mais?

Sobre Paula poderá recair a acusação de motim ou de crime de dano, de maior gravidade. Paula, que foi notificada da acusação por telemóvel, pediu ajuda aos internautas para que a ajudassem a provar a sua inocência:

Peço a quem tiver imagens minhas na manifestação de 14 de Novembro (ou noutra manifestação qualquer) a tirar fotografias que as envie a fim de constituírem prova neste processo. Obrigada pela vossa solidariedade.

Foi nessa altura divulgado um vídeo [16] com imagens das pedradas na assembleia que sugerem a presença de agentes infiltrados:

Ivo Gonçalves, no seu blogue pessoal [17], questiona a acção da PSP e do Ministério Público:

[…]não creio  que a PSP tenha cobertura legal, vocação, e até recursos adequados para fazer recolha e análise de informações na área política.  Daí até à referenciação de todos os múltiplos movimentos cívicos que têm surgido e dos seus activistas como suspeitos, vai um pequeno passo que os últimos acontecimentos levam a crer que já foi transposto. (…)

Finalizando, é evidente que tudo isto vai contribuir para refrear a vontade de participação em manifestações.

Uma nova sessão do julgamento de Myriam Zaluar está marcado para 13 de Março. Paula Montez e Mariana Avelãs encontram-se com termo de identidade e residência e aguardam novos desenvolvimentos. O crime de desobediência qualificada é punido com pena de prisão até dois anos ou pena de multa até 240 dias. A participação em motim é punida com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, e o crime de dano pode ir até três anos de prisão.

Este artigo faz parte da nossa cobertura Europa em Crise [1].