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Cabo Verde: Contar Histórias e Fomentar a Escrita Criativa

Categorias: África Subsaariana, Cabo Verde, Arte e Cultura, Língua, Literatura, Meio Ambiente, Mídia Cidadã, Migração e Imigração, Viagem

Ao longo de sete semanas, um concurso de escrita criativa [1] promovido pelo jovem jornalista cabo verdiano Odair Varela através do seu blog, Crioulo n'Descontra, levou uma dúzia de amantes das palavras de três continentes a pegarem nos seus teclados e a deixarem a imaginação fluir.

A motivação [2] para o lançamento do concurso, em finais de Março [3], era “fomentar o gosto pela escrita e pelo evoluir linguístico e artístico”, e para isso Odair propôs uma série de quatro desafios, cujas respostas em formato de prosa ou poesia, foram publicadas no seu próprio blog.

No dia 9 de Maio Odair anunciou os vencedores [4], decididos através da contagem de visualizações dos seus textos. Neste artigo fazemos um apanhado das histórias contadas.

Como será o país em 2090?

Em reposta ao primeiro desafio [5], foram dadas largas à imaginação sobre os rumos possíveis para Cabo Verde em termos de desenvolvimento sustentável, energia, ambiente e alterações climáticas, como Anete Carvalho [6] no País Museu [7], José Soares no poema [8] “Verdes eram as ilhas”, ou a Retrospectiva 2012-2090 [9], de Silvianne Spencer. O texto com mais visualizações [10] foi de Suruk Rodrigues, que escreveu em forma de poema:

Homens do Atlântico. Foto de Martin Edstrom copyright Demotix (27/07/2008). [11]

Homens do Atlântico. Foto de Martin Edstrom copyright Demotix (27/07/2008).

Constrói-se uma terra de betão.
E do sonho cultivado, colhe-se desilusão!
Que caia chuva, para transbordar apenas
barragens cheias de lágrimas dos que choram em vão!

Diferentes possibilidades de abordagem ao turismo foram também retratadas em vários textos, como por exemplo o de Letícia Varela, escrito em galego e intitulado Relógio do Tempo [12]. Menções à hipotética extinção do crioulo cabo verdiano foram feitas nos textos de Nani Delgado, Não Vou Ficar [13], e de Ary Rodrigues, Um Povo Sempre Escravo [14], que fala também sobre o crescimento económico do país e as influências da China.

Carla Gonçalves [15] contou a história de um antropólogo e investigador que em 2090 encontra o livro “A morabeza das ilhas crioulas”, cuja “capa clara onde figuravam dunas branquíssimas de uma beleza contagiante; belas morenas, flores e lá ao fundo algumas montanhas imponentes” o faz ir em busca do significado de “morabeza”. Chegado às ilhas, no entanto, o último morador conta que já “não há mais Cabo Verde [16]“:

Eis que Nhô Chico lhe responde num inglês rudimentar: Morabeza era a nossa essência, a música, a saudade. Morabeza eram as nossas crioulas, uma diferente da outra, mas todas únicas. Morabeza eram as nossas praias de areias brancas e negras, as montanhas fortes e imponentes, a simpatia e acolhimento. Morabeza eram as flores, a diversidade cultural, a dança. Morabeza era aquilo que nos distinguia, que nos fazia únicos. Mas isso acabou e não há mais aquele Cabo Verde…

Eliminar e Escapar

Bonecas de Cabo Verde. Foto de Wanaku no Flickr (CC BY-NC-ND 2.0) [17]

Bonecas de Cabo Verde. Foto de Wanaku no Flickr (CC BY-NC-ND 2.0)

“Alguém tem que ser eliminado e esta tarefa é tua”, eis o segundo desafio [18], que em prosa de ritmo acelerado deveria engendrar crime, acção e muito sangue.

Desde um patrão assassinado pela ex-funcionária [19] descontente com a sua demissão, à Bela morena que sucumbiu ao veneno [20] de uma aranha da espécie “Loxosceles anómala”, passando pelo “grande mistério da boneca assassina [21]“, um crime passional [22], e o clássico mordomo suspeito [23], houve ainda lugar para um golpe de estado [24] pela frente revolucionária, e para a introdução do movimento dos “indignados” em Cabo Verde, como escreveu Suruk Rodrigues sobre a história de Zeca [25]:

Zeca sofria com perseguição política dos novos tempos, que poucos entendem, ou seja, na rua era bandido, na escola era drogado, e não conseguia bolsas de estudo, estágio, trabalho ou coisa melhor. Arquitectou com genialidade o movimento dos indignados de Soncent com sede e acção no Mindelo, que no mês de Julho de 2012 vinha a ocupar as manchetes dos jornais neoliberais numa dura perseguição aos “fascistas” e entre eles o pai da sua amada.

Acabou por ser apunhalado pelas costas pelo futuro sogro, em plena manifestação em praça pública.

Quem matou Eva?

Mais crime para aguçar a vontade de escrita, mas desta vez o desafio [26] traçava à partida o perfil dos suspeitos do assassinato de Eva Sequeira, “viúva cinquentona” e abastada que foi encontrada num banho de sangue na sua mansão.

Quotidiano de Cabo Verde. Foto de Nuno Lobito copyright Demotix (12/02/2008) [27]

Quotidiano de Cabo Verde. Foto de Nuno Lobito copyright Demotix (12/02/2008)

Partindo de um rol de personagens do qual constavam a “enteada da morta e que nunca teve uma boa relação com a madrasta”, o “médico aposentado que sempre nutriu um amor de juventude não correspondido por Eva”, o “jovem bem-parecido” que ninguém conhecia, o “filho da empregada [que] tinha uma devoção enorme por Cármen [a enteada]”, e a melhor amiga de Eva:

No final do interrogatório, o investigador Nataniel Borges prendeu dois suspeitos sob acusação de cumplicidade na morte da senhora Eva Sequeira. Quem foi para a cadeia? Quais os motivos que os levaram a cometer tão horrendo crime?

A história mais lida [28], escrita por Margareth Lima, atribuía a culpa à melhor amiga de Eva, num crime passional:

eu amei aquela vadia desde o dia em que a conheci. Sofria cada vez que a via com outro, meu único conforto era a existência de outra pessoa que ela ignorava o amor. E justo quando ganho coragem e me declaro ela pede desculpas dizendo que só me queria como amiga. Queria ficar com esse imbecil [o médico aposentado], porque era seu Adão. Mereceu morrer sem disfrutar do seu Adão.

Três dias e um adeus

O que farias se o médico te dissesse que tinhas somente três dias de vida [29]?

O arrependimento [30] de quem ao longo da vida só soube ser “vil, carrasco, oportuno e muitas vezes sádico por poder”, levou-o a visitar porta a porta todos aqueles a quem devia pedidos de desculpa pelo seu comportamento em vida.

Mulher de Santo Antão. Foto de Julien Lagarde no Flickr (CC BY-NC-ND 2.0) [31]

Mulher de Santo Antão. Foto de Julien Lagarde no Flickr (CC BY-NC-ND 2.0)

Já a “poetisa [32]quando foi morrer,  “[apressou-se] a condensar [sua] vida à dos [seus] familiares e amigos mais chegados” numa celebração que durou toda a noite.

Vanda quis procurar o que sempre desejara [33] para além da sua vida crioula: ver a neve. Acabou fechando os olhos nos alpes suíços com um sorriso nos lábios e o coração cheio.

Enquanto a “noiva [34]“, antes da sua morte, decidiu bloquear todas as redes sociais – “Nunca gostei da ideia de ver pessoas mortas com Facebook” – Vitoria, a personagem do texto de Margareth Lima, vencedora do concurso de escrita criativa, a partir da Bolívia, tirou partido da rede social para convocar uma grande festa de aniversário e despedida com “familiares, ex-colegas, professores, companheiros de trabalho, amigos até inimigos”. Foi ela a única que teve uma morte reversível, já que os resultados das análises médicas afinal não eram os seus.

Terminou assim o primeiro concurso de escrita criativa lançado exclusivamente por um blog e promovido através do Facebook, lançando a semente para a “criação de hábitos e rotinas de escrita que [possam] ser enraizados e ainda mais desenvolvidos com o correr do tempo”.