“Brasilibaneses” ou os Brasileiros do Líbano

A história da emigração libanesa no Brasil é longa. Conta-se que libaneses cristãos começaram a emigrar para o Brasil já no fim do século XIX e início do XX, enquanto o Líbano ainda fazia parte do Império Otomano. No entanto, as vagas de emigrantes libaneses nunca cessaram de ir para o Brasil depois que os otomanos foram derrotados na Primeira Guerra Mundial. Pelo contrário, o número só fez aumentar em consequência dos acontecimentos que se seguiram na região tal como o estabelecimento do protetorado francês, a criação do Estado de Israel e a guerra civil, que durou de 1975 a 1990, esta responsável pela vaga migratória de libaneses muçulmanos.

No Brasil esses libaneses –lá chamados de turcos– foram trabalhar como mascates, negociando produtos manufaturados como roupas e bijuterias nas metrópoles brasileiras. Mais tarde, muitos deles abririam suas lojas em centros comerciais como os da Rua Vinte e Cinco de Março e da Rua Oriente no centro da cidade de São Paulo, mudando para sempre a paisagem urbana da capital paulista bem como a forma de se fazer comércio.

"e eu aqui estou nesta masmorra de onde vejo o Bósforo (...), de onde sinto odor de saborosíssimos quibes esquentando a alma do povo numa rua qualquer de um país que tem mais descendentes de libaneses do que o Líbano". Foto: William Droops no Flickr (CC BY-NC-SA 2.0)

"e eu aqui estou nesta masmorra de onde vejo o Bósforo (…), de onde sinto odor de saborosíssimos quibes esquentando a alma do povo numa rua qualquer de um país que tem mais descendentes de libaneses do que o Líbano". Foto: William Droops no Flickr (CC BY-NC-SA 2.0)

Como sempre se passa nestes casos, inicialmente os libaneses mantiveram-se à parte da sociedade brasileira: falavam a sua língua (árabe, mas em muitos casos francês), comiam a sua comida, educavam os filhos à sua maneira. Contudo, não tardou para que eles adaptassem sua cultura ao país que haviam adotado; assim, logo aprenderam o português, adaptaram suas receitas culinárias aos ingredientes lá encontrados, casaram-se com brasileiros e brasileiras de origem libanesa mais distante, mas também de outras comunidades tais como a portuguesa e a espanhola. Enfim, tudo seguiu seu caminho natural, com seus descendentes completamente integrados ao país em que nasceram.

A crise econômica que o Brasil sofrera nas décadas de 1980 e 1990 afetaria diretamente essas famílias, dependentes diretamente dos rendimentos obtidos com o comércio. Muitos optaram por retornar ao Líbano e reconstruir suas vidas na velha pátria. Evidentemente já não eram mais os mesmos, pois que tinham seus filhos brasileiros natos, os quais não falavam outra língua que não a portuguesa. A este grupo chamou-se de “brasilibaneses” ao qual Roberto Khatlab diz no Blog do Conselho de Cidadãos Brasileiros no mundo:

[Trata-se de] um neologismo com o qual eu identifico os cidadãos binacionais líbano-brasileiros no Líbano – conta com cerca de 10 mil pessoas (sem incluir aqueles que retornaram ao Brasil sem ter obtido a nacionalidade). Em 1954, o banqueiro Jean Abou-Jaoudé funda, em Beirute, a Associação da Amizade Brasil-Líbano, que está em atividade até hoje. Os “brasilibaneses” estão presentes em todo o território libanês, do Norte (Dar Beechtar…) ao Sul (Kabrikha…), mas principalmente no Bekaa, onde existem aldeias inteiras – como Sultan Yaacoub, Kamed-Lawz e Ghazzé – com 90% de “brasilibaneses” que falam fluentemente o português e perpetuam os costumes brasileiros (gastronomia, música, arquitetura, agricultura…).

É no Bekaa que acontece um fenômeno muito interessante: lá há cidades como Sultan Yakub onde a primeira língua não é nem o árabe nem o francês, mas sim o português. O jornalista Gustavo Chacra em seu blog trata do assunto com certa surpresa:

Quem viaja para Sultan Yakoub é alertado que, uma vez na cidade, pode pedir informações em português que qualquer pessoa responde na hora. Afinal, nesta pequena vila em uma colina isolada no meio do vale do Beqaa, quase todos os mil habitantes moraram ou ainda têm um parente próximo que vive no Brasil.

A reportagem fez o teste e, realmente, o primeiro pedestre abordado falava português. Era Hussein El Jaroush. Nascido no Líbano, ele foi há duas décadas para o Brasil, onde viveu por 13 anos. Passou por Salvador, Rio de Janeiro, Recife, Maceió e, como muitos conterrâneos, terminou em Santo André. Na cidade do ABC paulista, existe até uma espécie de clube, chamado “Chácara Sultan Yakoub”, onde os originários desta vila do Líbano se reúnem nos fins de semana para jogar futebol e fazer churrasco.

Pedacinho do Brasil em Sultan Yacoub. Foto: Renata Malkes

Pedacinho do Brasil em Sultan Yacoub. Foto: Renata Malkes (usada com permissão)

Gustavo Chacra cita ainda outro “brasilibanês”, Jamal, de 39 anos, ao qual os novos tempos impõem novos desafios, como por exemplo a manutenção do português entre as novas gerações, principalmente as nascidas agora em território libanês.

O importante para Jamal é manter a ligação com o Brasil pela língua. Especialmente por causa do seu filho. Ele diz que sempre fala em português com o menino, apesar de muitas vezes receber a resposta em árabe.

Assegurar a manutenção do português entre as famílias “brasilibanesas”, entre outros elementos de nossa cultura, fez com que em abril de 2011 o governo brasileiro criasse o Centro Cultural Brasil-Líbano em Beirute, que “todas as quartas-feira exibe filmes gratuitamente para a população de Beirute, a maioria brasileiros e descendentes”.

Roda de Capoeira em Beirute, pelo grupo de libaneses que fundaram a escola "Sobreviventes" por terem sobrevivido à guerra civil. Foto do autor.

Roda de Capoeira em Beirute, pelo grupo de libaneses que fundaram a escola "Sobreviventes" por terem sobrevivido à guerra civil. Foto do autor.

O blog “Excessivamente Humano” dá mais detalhes:

“É uma antiga reivindicação dos libaneses, de forma geral, e da comunidade de origem brasileira no Líbano, de modo especial”, explica Roberto Medeiros, ministro-conselheiro e chefe do setor cultural da embaixada brasileira, sobre a iniciativa de fundação do centro. “Em encontros sociais ou culturais com os membros da embaixada em Beirute, os libaneses sempre solicitavam que o governo brasileiro criasse uma instituição com a função específica de divulgar a língua portuguesa e a cultura brasileira”, completa.

O fato é que esta reivindicação era feita há muitos anos e por décadas esteve presa na malha burocrática de Brasília. Ademais, embora a iniciativa do Ministério das Relações Exteriores do Brasil seja louvável, ainda está muito distante de atender o principal público para o qual o centro foi criado, pois brasileiros como Jamal não podem frequentá-lo porque vivem no Vale do Beqaa, onde a maioria dos brasileiros se concentram. O próximo passo seria levar professores de português àquela região, bem como fomentar e apoiar associações culturais brasileiras e outros centros culturais dedicados, por exemplo, à America Latina, tal como o Centro dos Estudos e das Culturas da América Latina da Universidade de Kaslik e o Projeto Alecrim Internacional no Líbano, este empenhado com a manutenção da identidade cultural de crianças brasileiras que vivem no exterior.

O momento é oportuno para que o Brasil atenda a esta antiga demanda dos brasileiros no Líbano, mas também para tê-los como intermediários no comércio entre os dois países.

6 comentários

  • Thanks a lot for this great post Richard …

    I always wanted to write something about the Lebanese diaspora … and now you started it with the most numerous one :)

    our brothers and sisters in Brazil represent an important community :)

    from one side its sad that Lebanon is still unable to keep its children from leaving but at the same time I feel proud that this tiny country has given so much to the world :)

    Once more, Thanks a lot and Regards from the Land of the Cedars ,,

  • Dear Thalia,

    Lebanon is a small country in size, but a universe in culture. After living three years in Lebanon I’ve really learned to respect its people. In Beirut, when I said I was Brazilian, Lebanese people immediately opened a smile. I’ve never felt a foreigner there.

    ;-)

  • Alfredo Giannantonio

    Richard: This aricle is fascinating, thanks so much! As a frequent visitor to Brazil in the past, I could see that all European and Middle Eastern immigrant groups molded to form a unique culture and a unique country! Alfredo Giannantonio, Parma (Italy), 06-03-2012

  • Elisa Hachem Marques

    I am looking for informations from my grandparents who came to Brasil after First War . They came to Belem, state of Para. We dont have any information, since my mother is dead too. Their names are : Kalil Hachem e Adelia Hachem. Have you or your relatives ever heard something about them ?

  • Elizabeth Karam Nocker

    Sou filha de pai libanês de Amchit e mãe filha de libaneses. Visitei Líbano em julho de 2015 e fiquei maravilhada com a terra dos meus pais e minha segunda pátria. Fui ao Vale do Bekaa e conheci o bairro em que moradores falam o português.,
    Foi uma viagem memorável.

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