Portugal: A Reputação do (defunto) Chefe da Polícia Política

Sobrinhos do defunto major Silva Pais, o último director  da PIDE (1962-74), polícia política do “Estado Novo” em Portugal, clamam ultraje à memória do tio por peça de teatro em cujos diálogos se lhe imputa o envolvimento no assassinato do General Delgado. Em Maio, conforme reportámos, abriu-se audiência criminal contra a autora da peça “A Filha Rebelde” e os directores do Teatro Nacional D. Maria II que a levaram ao palco em 2007.

Oposição e Morte

Delgado rompeu com o regime nacional-católico candidatando-se à eleição para Presidente da República (1958), agendada pelo ditador Salazar, com surpresa de todos, por “sufrágio universal”. Universalidade relativa, claro. Só os alfabetizados podiam votar e o analfabetismo era esmagador. E as fraudes eleitorais eram regra (os mortos “votavam”). Mas foi a primeira assunção do sufrágio universal para a Presidência da República. Era estranho.

Todavia o “sufrágio universal” traduzia, para Salazar,  expressão de mero assentimento popular e não uma opção programática dos eleitores. Este “sufrágio universal” dos nacional-católicos tem significado específico.

Delgado apresenta-se. A campanha é viciada. Proibiram-lhe manifestações, comícios, desfiles. Impediram-lhe contactos com a população. Pretensamente vencido nas urnas, o general afasta-se alegando fraude. A PIDE foi incumbida de o raptar além fronteiras. Matou-o em Espanha. Por espancamento. Ficcionou-se um disparo acidental. Não houve versão oficial. O evento esclareceu-se em julgamento, finalmente possível, em 1981. No Cantigueiro, Samuel lembra:

BIlhete de identidade do director da PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado). Imagem do domínio público.

o assassino Silva Pais estava a ser julgado exactamente pela participação nesses crimes [assassinatos de Humberto Delgado e secretária], quando morreu de causas naturais seis meses antes de ser lida a sentença.

Os sobrinhos do director da PIDE insistem que a peça de teatro (centrada na filha de Silva Pais) é crime de ofensa à memória do tio “por em três falas da peça se insinuar que o biltre estaria ligado aos assassinatos“. Peticionam indemnização de 30.000 euros. Nem o Ministério Público (MP) acusou, parece. Contudo um tribunal criminal recebeu a acusação (particular) e abriu audiência. Podia tê-lo feito?

Direito Internacional dos Direitos do Homem

A simples existência e tramitação do processo pode traduzir violação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, por oposição aos critérios jurisprudenciais do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. O fenómeno é compatível com o lugar onde a própria tradução oficial da Convenção Europeia está viciada, “traduzindo-se” ali “reputação” por “honra” (não é a única adulteração).

"Mural colocado na cadeia do Aljube com o nome de todos (dos que existe registo) os homens e mulheres assassinados pela PIDE, alguns a mando directo desse facínora chamado Silva Pais". Foto de Jota Daniel, partilhada no grupo do Facebook em Solidariedade com os réus do processo crime «A Filha Rebelde»

"Mural colocado na cadeia do Aljube com o nome de todos (dos que existe registo) os homens e mulheres assassinados pela PIDE, alguns a mando directo desse facínora chamado Silva Pais". Foto de Jota Daniel, partilhada no grupo do Facebook em Solidariedade com os réus do processo crime «A Filha Rebelde»

Importa debater a  incompatibilidade destas práticas (reiteradas) com os pressupostos da democracia. Não convém ao Estado Democrático a prática institucional de estado nacional-católico, imposta por (evidentes) deformidades da formação.

Delgado Rosa, investigador, aponta a possibilidade de se abrir aqui “um precedente gravíssimo”. Talvez não. A não ser no plano da condenação internacional do Estado por violação dos art.ºs 17 e 46 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, (clara proibição de interpretar a Convenção contra si própria e exigência da eliminação, ao menos tendencial, do problema onde a condenação do Estado radicou). Era útil uma exautoração exemplar de tais práticas no Tribunal Europeu.

Faltam dados. Na imprensa, como nos blogues. (Exemplo: Houve pronúncia -inculpação confirmada por juiz para debate em julgamento?)

Há bons protestos.

Protestos e Polémica

As atrocidades infligidas aos opositores, por inspectores e agentes sob a alçada de Silva Pais, enchem milhões de páginas no Arquivo da Torre do Tombo [arquivo histórico central],

lembra o movimento cívico “Não apaguem a memória”.

Foto da peça A Filha Rebelde exibida no Teatro Nacional D. Maria II (TNDM II) em 2007. Copyright Margarida Dias, TNDM II.

Foto da peça A Filha Rebelde exibida no Teatro Nacional D. Maria II (TNDM II) em 2007. Copyright Margarida Dias, TNDM II.

Em Caligrafias ìberes sublinha Rosário Duarte da Costa a gravidade da censura contra homem de cultura e professor universitário, caso do antigo director do Teatro Nacional de cuja direcção foi afastado, durante este processo e por causa dele. (Facto não noticiado).

Determinada, Margarida Belchior deixou À Beira Rio:

Confio que seja feita justiça, para já no tribunal, (…) e em muitas outras dimensões da nossa vida e actividades colectivas: reedição do livro, levar a peça novamente à cena(…)

No Portugal dos Pequeninos, João Gonçalves reproduz texto de Cintra Torres (do Público):

Correcto será defender, em primeiro lugar, os direitos de quem exprime opiniões para nós detestáveis ou factos para nós desagradáveis.

À “porta da Loja” diz o José, à bolina, com autoridade:

O que a peça de teatro pretende é imputar factos concretos que podem ser falsos e que nada autoriza se publiquem ou imputem porque as pessoas visadas estão vivas e são da família do difamado.

Pensa que pensa assim o jurista médio à moda da terra. Mas pode haver-se por estranha a afirmação de envolvimento do antigo director em operação da “polícia” que só ele dirigia?

Esta renitência ante a liberdade de expressão tem uma única fonte doutrinária actual: a Libertas Praestantissimum. Aqui invertem-se os termos. É preciso que alguém, ou alguma coisa,”autorize” a falar. E a jurisprudência local está cheia de aberrações similares. Tais minutas são incompatíveis com qualquer democracia e violam a Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Só a exigência do silêncio tem de demonstrar-se em Direito, não a palavra. A minuta é falha. Desamparar tais minuteiros tornou-se tarefa política. É preciso cortar-lhes os textículos.

Em Contra Ordem, Kritis, usa o picador:

Está (…) prejudicada a defesa do bom nome do director geral de uma organização declarada criminosa por texto legal. Estão todos errados, portanto.

Sublinha:

(…) a humilhação da submissão de um autor teatral à escumalha da reinserção social, (…) os absurdos de se ser interrogado (…) sem defensor e por assistentes sociais asininas, (…) o absurdo (…) que se traduz na transferência para debate e decisão penal de uma tarefa que é da crítica literária.

Falta passar da dureza dos factos à das ideias. É inaceitável esta resistência aos critérios (vinculativos) do Tribunal Europeu quanto à liberdade de expressão, criação, investigação e consciência. Deve opor-se-lhe um só argumento jurídico: “não pode ser”.

Essas minutas serão espelho de mentalidade, não Direito.  E são provavelmente delitos.

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