Battisti: O Imbróglio Ítalo-Brasileiro sobre as Sombras do Passado

N. do T.: Este artigo foi publicado originalmente em 10/02/2009. Portanto, antes da realização da partida de futebol entre os dois países – uma partida relativamente tranquila que terminou com a vitória do Brasil.

O Brasil irá enfrentar a Itália em uma partida de futebol hoje (10/02) em Londres. Este jogo amistoso está longe de ter a importância de outras disputas do passado, incluindo partidas decisivas em finais de Copas do Mundo, mas os sentimentos que se projetam sobre o jogo incendiaram as blogosferas nacionais — veja também neste artigo do Global Voices [En].

Após semanas de burburinho transatlântico, alguns blogueiros estão começando a se perguntar como e porque este caso chegou tão longe. Será que a decisão do Governo Brasileiro de conceder asilo político para o foragido italiano Cesare Battisti realmente é digna de tanta atenção?

Que elementos podem estar em ação para trazer resultados tão notáveis, como o minuto de silêncio feito pelos Ministros do Parlamento Europeu em uma sessão realizada na semana passada em homenagem às alegadas vítimas de Battisti mortas há 30 anos, ou a despedida de um ícone jornalístico brasileiro nascido na Itália, por conta do acalorado debate nacional sobre o caso, ou mesmo a decisão do governo italiano de solicitar o retorno do embaixador italiano em Brasília? O governo italiano foi longe a ponto de ameaçar cancelar o jogo amistoso (do dia 10), levando os brasileiros a sentirem um golpe totalmente fora de proporção. Berlusconi é o culpado por isso.

Celeuma injustificada a criada pelo “caso Battisti” e a atitude de bufão tomada pelo governo chefiado por Silvio Berlusconi. Pelo menos aproveitei a chance para estudar sobre o tema antes de me arriscar a escrever algumas linhas. A maioria dos analistas não faz segredo da passionalidade de suas analises e transformaram o caso numa disputa partidária, ou pior, futebolística.
Brasil vs ItáliaDissolvendo No Ar

A Itália, hoje, vive o governo histérico de Berlusconi. É o dono da grande rede de televisão italiana, é dono de jornais, é dono de times de futebol. Ou seja, é o dono da Itália. E é nitidamente fascista, xenófobo, racista.
A HISTERIA DE BERLUSCONI E A SOBERANIA BRASILEIRABlog de Luís Antônio Castagna Maia

A reação italiana agora é bem diferente daquela de um ano atrás, quando o governo francês se recusou a extraditar Marina Petrella, uma ex-terrorista das Brigadas Vermelhas que foi informada da decisão em sua cama de hospital pela própria Carla Bruni. Na vez do Brasil, o Sr. Sarkozy foi obrigado a vir a público e negar qualquer conexão com Cesare Battisti, o que acabou trazendo ainda mais pimenta para a história.

Vários blogues mencionam que a principal causa da fúria italiana desta vez foram os termos usados pelo Ministro da Justiça Tarso Genro para anunciar a concessão de asilo, declarando que Battisti era vítima de perseguição política e que sua vida poderia estar em risco caso ele voltasse a sua terra natal.

Mais do que a decisão em si, o que provocou a violenta reação do governo italiano foram os termos utilizados pelo ministro da Justiça, Tarso Genro, para negar o pedido de refugio, aceitando as alegações de Battisti, segundo as quais correria risco de vida e de perseguição política caso voltasse à Itália.
Battisti e Rother: a arte dos tiros no péBalaio do Kotscho

Por mais que insista que a decisão do Brasil foi soberana, é sabido que Tarso não consultou o Itamaraty antes de resolver. E enfiou na cara da Itália e do governo do tosquíssimo Silvio ,Berlusconi uma justificativa dura, nada diplomática e desnecessária. A França obviamente desconfia das mesmas possibilidades que afligiram o pimpão ministro da Justiça. Mas preferiu se referir às condições de saúde de Petrella, em vez de criar caso por nada. Diante disso, a mesma Itália recuou. Parece razoável que a mesma decisão soberana que Tarso defende seja acompanhada do tensionamento das relações pela Itália, que viu um ministro de Justiça brasileiro pela primeira vez questionar a justiça dos outros. Molecagem de segunda categoria. Um bom exemplo de como uma decisão justa pode ser prejudicada por quem não sabe respeitar a soberania alheia.
Tarso errou (mesmo) com BatisttiBlog do Savarese

O futebol não é a única ligação forte entre brasileiros e italianos. Há muitas outras interfaces culturais, que se somam ao fato de que o Brasil é o lar da maior comunidade italiana fora da Itália. No presente caso, parece que esta proximidade deu início uma complexa reação em cadeia sobre questões não resolvidas do passado dos dois países: os “anos de chumbo” [En].

No Brasil, onde grupos armados lutaram contra a ditadura militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985, uma lei de anistia fez com que nem os oficiais de segurança acusados de tortura nem os indivíduos envolvidos em violência contra o Estado fossem processados. A Itália se orgulha de ter mantido suas instituições democráticas durante seus “anni di piombo” (1970-1980), mas muitos aspectos do período permanecem envoltos em mistério.

Uma figura-chave neste debate aqui no Brasil é Mino Carta; um jornalista, editor e escritor nascido na Itália, que ajudou a criar 3 das 4 principais revistas jornalísticas atualmente publicadas no país. Conhecido por ser uma voz independente e dotada de grande autoridade, e também um amigo próximo do presidente Lula, ele usou seu blogue para vigorosamente atacar o Ministro Genro por sua postura e declarações no episódio Battisti. Na semana passada, em um último post onde ele declara que perdeu a sua fé no jornalismo, e no Brasil, o Sr. Carta fechou seu blogue e anunciou seu silêncio na revista Carta Capital.

Telefona Jean-Paul Lagarride de Darfur. Pergunta: “Vem cá, o Tarso Genro quer declarar guerra à Itália?” “Talvez”, admito. Segue-se o seguinte diálogo.
Ele – Além de jurista, trata-se de um professor de história e ciências políticas. Um mestre.
Eu – Você acha?
Ele – Claro, acaba de dar à Itália uma aula de democracia. Como o Brasil saiu dos seus anos de chumbo? Com a lei da anistia. A Itália, até hoje, não fez a sua lei da anistia.
Eu – Deve ser porque a Itália não teve um general Golbery.
Ele – Pois é. E como o velho Golba fez à Itália.
Eu – Quem sabe o nosso Tarso não tenha percebido que há chumbo e chumbo?
Lagarride e Tarso GenroBlog do Mino

Está claro que o ministro Tarso não erra ao dizer que a mídia nativa está sempre a agredir o governo de Lula, e contra esta forma desvairada de preconceito CartaCapital tem se manifestado com frequência. Ocorre que, ao referir-se à extradição negada a mídia está certa, antes de mais nada em função dos motivos alegados, a exibir ao mundo ignorância, falta de sensibilidade diplomática e irresponsabilidade política, ao afrontar um estado democrático amigo. De todo modo, Battisti transcende sua personalidade de “assassino em estado puro”, segundo um grande magistrado como o italiano Armando Spataro, para se prestar a uma operação que visa compactar o PT e empolgar um certo gênero de patriotas canarinhos. Isto tudo me leva a uma conclusão desoladora, embora saiba de muitíssimos leitores generosos e fiéis: minha crença no jornalismo faliu.
DespedidaBlog do Mino

Cesare Battisti está preso em Brasília a espera da decisão final do Supremo Tribunal Federal Brasileiro (STF). Uma importante peça do processo é uma carta de Francesco Cossiga, um ministro do interior linha dura dos anos 1970 na Itália, confirmando que os crimes de Battisti eram de fato políticos em sua natureza. Em uma recente entrevista à revista IstoÉ, que foi largamente reblogada por aqueles que estavam acompanhando o caso, Battisti pede a seu país natal que reveja o que realmente aconteceu naqueles tempos.

“Acho que o gesto do ministro Genro foi de coragem e de humanidade. A decisão é muito importante não só para mim, Cesare Battisti, mas para a humanidade. A Itália precisa reler a própria história. Nós estamos dando à nação italiana a possibilidade de reler sua história com serenidade, humanamente… Naquela época, a tortura fazia parte do cotidiano da Itália. A Itália tem de reconhecer isso. Mas não pode. Porque a Itália é Europa. E a Itália não pode admitir que nos anos 1970 viveu uma guerra civil.”
Cesare Battisti – “Por que tudo isso comigo?”Blog do Se

Navegando através dos blogues brasileiros que cobriram o episódio, é fácil achar opiniões que espelham o que vem sendo publicado pelos principais veículos da mídia tradicional. Os resultados de uma recente enquete realizada pelo Globo.com mostram 80% de discordância com a decisão do governo brasileiro de conceder asilo ao Sr. Battisti. Ainda, há algumas perspectivas interessantes sobre as contradições evocadas pelas diferentes soluções políticas aplicadas pelo Brasil e pela Itália para tratar das feridas políticas do passado, e nas diferentes formas de lidar com as contradições trazidas pelo presente e pelo futuro.

A grande imprensa se refere ao ‘terrorista Battisti’ como se tivesse agido ontem, mas estamos falando de coisas acontecidas entre 30 e 40 anos atrás. O ministro Tarso Genro tem razão ao dizer que a imprensa teve comportamento diferente quando ele propôs a rediscussão da punição aos torturadores. Aí disseram que era coisa do passado… Ele é acusado de ter tomado uma decisão política, mas seguiu o que o STF já tinha decidido sobre isso. Um dos críticos do ministro foi o governador Serra, que se mostrou escandalizado com Battisti, mas na última eleição apoiou Fernando Gabeira, que sequestrou um embaixador americano, mas não é considerado terrorista.
Fascistas italianos e mídia brasileira mentem sobre BatisttiBahia de Fato

Por fim, uma pergunta básica, incontornável: qual é a motivação do governo italiano? Por que tanto empenho em botar as mãos num personagem tão inofensivo, depois de tanto tempo? A resposta, ou parte dela, está na conjuntura doméstica da Itália, marcada pela crise e por uma onda de protestos em que se sobressai um vigoroso ativismo estudantil. Berlusconi e seus aliados reagem à ascensão de uma esquerda não-domesticada sacudindo o espantalho dos “anos de chumbo”. A histeria em torno do caso Battisti, manipulado para criar uma anacrônica associação entre os “radicais” de ontem e de hoje, nada tem de irracional. Ao contrário, dá respaldo a um discurso em que o prefeito fascista de Roma, Gianni Alemanno, acaba de declarar que “o movimento estudantil italiano (seria) dirigido por 300 criminosos da universidade La Sapienza”.
A mídia contra BattistiEntreatos

Vamos torcer para que o jogo de hoje seja um bom jogo, onde o respeito genuíno que os povos Brasileiro e Italiano alimentam pelos cidadãos, pela cultura e, sobretudo, pelo futebol arte de ambos os países possa brilhar mais do que imbróglios menores e politicamente motivados.

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